24/08/2015

AS HISTÓRIAS DO MAESTRO - JACQUES DELACÔTE, parte 2

Jacques Delacôte,
foto do site oficial
Entrevista por Helena Piccazio.

Maestro Jacques Delacôte veio a São Paulo para reger a ópera Eugene Onegin, de P. I. Tchaikovsky, no Theatro Municipal, em maio e junho de 2015. Durante os ensaios ele nos divertiu contando algumas histórias. Ótimas, adoramos! Daí veio a ideia de entrevistá-lo.

Leia aqui a Parte 1 desta entrevista
Leia aqui a Parte 3 desta entrevista

JON VICKERS, A BRIGA

JD - Nessa turnê, que aconteceu em Seul, na Coreia do Sul, eu tive uma briga com Jon Vickers.

HP - A do Sansão e Dalila, essa mesma turnê?

JD - Sim. Jon Vickers era assim (e abre os braços): forte! Karajan tinha medo dele, Colin Davis tinha medo dele, todo mundo. Eu? Eu não. Jon Vickers apareceu no primeiro ensaio de piano, Sansão, assim sem cumprimentar. Eu levantei, ofereci a mão e ele me ignorou, passou reto por mim. Um início muito mal. Durante os ensaios ele nunca cantou, nunca me perguntou “Maestro, podemos ir nesse tempo?” ou “Preciso de um pouco de ar aqui”, “O maestro pode me ajudar?”, nada! Chega o ensaio geral em Seul, todo mundo lá, orquestra, coro, todo mundo. Para nós era como o primeiro espetáculo! Chegamos a um certo ponto e ele falou (em tom de ordem):
- Maestro, meu tempo é esse: 1-2-1-2.
O quê?! Eu deixei cair a batuta e falei para ele:
- Jon, por favor, venha até a beira do palco. Jon, tem uma coisa no mundo que eu não recebo de ninguém, nem de você: ordens! Você nunca cantou, você nunca falou comigo. Meu tempo é simplesmente o único tempo possível.
E eu estava pronto para falar “Até mais!”. Naquele momento Hugh Maguire pulou como o diabo, pequeno Hugh com o nariz assim, e falou: 
- Senhor Vickers, o maestro tem razão! Você pega liberdades com a música e isso não se pode fazer. Nós vamos com o maestro!
Tomei um susto, olhei para ele... e assim como tinha pulado, se sentou e ficou calmo. Jon Vickers ficou lá, como se tivesse recebido uma pancada e falou:
- Bom, então agora chegou a hora de eu ir embora.
Deixou o palco. O chamado intendente (diretor geral) da Royal Opera House naquela época, John Tooley, Sir John, se aproximou de mim e perguntou:
- Jacques, vamos juntos falar com ele? Vamos?
- Sir John, eu não, ele foi grosseiro do início até agora, nunca cantou, nunca perguntou, nunca falou comigo, ignorou a mão que eu ofereci. Eu não vou.
Ele foi para o camarim do Jon Vickers, voltou com ele. Vickers tava esfumaçando, como um zebu enraivecido. E eu estava esperando. Ele começou a comunicação, me lembro:
- Bom, vamos falar em que língua?
- É com você, Jon, é com você. - eu disse - À vontade. Inglês? Alemão? O quê, italiano?
A partir daí a história se acalmou, ele mudou totalmente de atitude, e começou a insistir para eu me sentar ao lado dele nos taxis que nos levavam a convites oficiais, embaixadas. Ele sempre falava “Maestro, maestro, tem que sentar comigo, hein?”. O último espetáculo chegou, em Tóquio, e depois tinha um convite, um evento, ele se aproximou de mim e falou:
- Maestro, me desculpe. Eu teria gostado muito de cantar bem melhor para o senhor, mas eu não estava bem, me desculpe.
- Ok, John. Ah! (com um largo sorriso) Da próxima vez, hein? 
Pronto.
Karajan tinha medo dele; todo mundo tinha medo dele, haha, todo mundo, eu não. 







Jon Vickers canta "Seigneur, inspire moi" (Senhor, me inspire), da ópera Sansão e Dalila, de C. Saint-Saens.




FRANCO BONISOLLI

JD - Franco Bonisolli era um tenor italiano grandíssimo, mas... Cantou várias vezes comigo, chegamos a ser bons amigos. Ele confiou em mim sempre. Buscava o contato para conversar comigo. Ele gostava de mim, eu gostava dele. A mulher dele, a americana Sally, que cuidava tão bem dele, tava lá também. E esse dia no Japão, Turandot, Franco Bonisolli aparece com um pequeno livro, e eu falei:
- Ô Franco, você tem um bom livro aí?
- Não. É Turandot.
- Turandot? Bom, minha partitura tem umas quatrocentos e sessenta e seis páginas e você tem um livro anêmico? Turandot? Eu não acredito. Como pode?
- Olha, o que os outros cantam, fazem, não me interessa, eu simplesmente arranquei todas as páginas e joguei no lixo! 


Franco Bonisolli canta "Nessun Dorma" (Que Ninguém Durma), da ópera Turandot, de G. Puccini.


COMO TUDO COMEÇOU

HP - Eu tenho uma pergunta: como foi que o senhor resolveu virar maestro? Por quê?

JD - Inicialmente eu teria gostado muito de ser pianista de concerto e compositor. Mas infelizmente a vida decidiu outra coisa, a família estava muito pobre e então aulas de piano estavam fora de questão. Composição, o quê? pfff... fora de alcance pra mim. Isso explica porque com 10 anos eu comecei a tocar flauta. Por acaso eu tinha um certo talento. Detestava esse instrumento, cada dia trabalhar o som, trabalhar a técnica, para mim não era música. Eu tinha uma anomalia, vou chamar isso de anomalia cerebral. (eu arregalo os olhos) Não, não, (risos) nada perigoso! Toda a minha vida eu ouvi dentro da cabeça estruturas musicais, acordes, tonalidades, a maior parte do tempo menores e tão tristes, melancólicas. Então um dia uma pessoa me deu a oportunidade de reger uma orquestra, assim como autodidata. Funcionou. Um compositor americano, eu lembro. Ele me falou, sério: 
- Você tem a obrigação de virar maestro, mas tem que estudar. Como diletante não funciona. 
Eu pensei “Bom, vamos estudar.” E eu voltei a estudar, na Academia de Música de Viena. Escolhi Viena por causa do repertório. Fui para lá sem nada, sem dinheiro... sofri do frio durante anos, eu não tinha roupas boas para o inverno. Sobrevivi.

HP - Mas isso do compositor americano te colocar na frente da orquestra aconteceu quando?

JD - Eu tinha acabado meu estudo no Conservatório de Paris, com as bolsas cheias de prêmios. Com flauta. Solfejo superior, uh! Eu já tinha estudado Harmonia, Contraponto, já tinha começado a estudar Fuga também, com um professor maravilhoso, o sucessor do Olivier Messiaen, um sujeito maravilhoso chamado Jean-Pierre Guézec. Ele morreu com 35 anos de coração fraco. E ele me preparou para o estudo de escritura musical. Aí eu pensei, “Bom, eu vou estudar regência de orquestra, tá bom, tô pronto.”, mas um dia, e não em Paris, com certeza. Escolhi Viena. E esse compositor americano que me deu a primeira oportunidade de reger a orquestra dele mandou, sem eu pedir nada, uma recomendação para Leonard Bernstein, que estava em Viena regendo a 2a Sinfonia de Mahler. Eu fiquei assim (como sem palavras)! Foi para o Bernstein, viramos bons amigos e um dia ele me perguntou:
- O quê que você está fazendo aqui? O quê?
- Mah... nada, acabei o estudo, agora tô esperando a oportunidade de começar a reger.

HP - Isso foi depois que o senhor se formou em regência em Viena?

JD - Sim. E ele me falou “Tem que participar da competição Dimitris Mitropoulos em Nova York.” 
Leonard Bernstein. Foto: CBS, extraída daqui

HP - Então foi o Bernstein que falou para o senhor fazer essa competição?

JD - Me deu o conselho de participar, somente. Nunca me protegeu. Eu nunca pedi uma recomendação do Bernstein, eu não tenho recomendação dele, não. E, bem, ele me deu o endereço da secretária dele em Nova York, essa moça responsável pelas formalidades do concurso. Eu escrevi, ela respondeu, eu tinha de mandar 3 recomendações de personalidades importantes do mundo musical. Eu tinha Swarowsky, meu professor. Eu tinha não lembro quem e Darius Milhaud, o compositor. E ele me mandou uma recomendação tão generosa... Eu fui aceito como candidato oficial, mas não tinha dinheiro pra pagar o vôo pra Nova York. E naquela época eu tinha uma namorada da Alemanha, ela tinha falado de mim com a mãe, e a mãe me ligou (ele faz uma carinha de medo) “E agora?” E ofereceu de pagar o vôo pra mim. Eu falei:
- Não... não, obrigado. Não é possível, não... Muito obrigado, a senhora é muito generosa. Não. Brigado. 
Me ligou uma segunda vez. “Não. Brigado.” A organização Mitropoulos em Nova York me contatou pra me perguntar o número do vôo, pra me pegar no aeroporto John Kennedy. Mas eu não tinha nada, nem bilhete, passagem, nada. E essa senhora de Hamburgo me ligou uma terceira vez:
- Ah, young man, e agora? Você vai perder essa chance única? Você vai perder por um pouco de dinheiro? Aceita!
Eu aceitei... Ela pagou, eu venci. De repente eu tinha 5 mil dólares. Daquela época?, bem pesados! Eu encontrei essa mulher, a mãe dessa garota, 9 anos mais tarde quando eu regi em Hamburgo pela primeira vez. Eu liguei para ela e falei “Culpa da senhora se eu estou aqui!”, e ofereci ingressos para o concerto.

HP - Nossa, essa história é linda!

JD - E a vida é assim, às vezes... E por isso eu sempre falo com colegas jovens, com jovens em geral: “Não pode subestimar a vida, a vida pode ser muito mais rica do que você pensa, do que você acha. Acredita! Vai! O resto não me interessa, covardia!”

SWAROWSKY E A APOTEOSE DE BRAHMS
Hans Swarowky
Foto: Dutch HMV-Bovema

HP - Uau... Tem mais histórias?

JD - Sim! (e olha sua listinha) Meu professor - eu já contei essa história? Swarowsky? - Swarowsky teve um tumor no cérebro. Operou, começou a enfraquecer. Eu tinha voltado de concertos com a Cleveland Orchestra, fiz a 3a sinfonia de Gustav Mahler, e ele gostava da 3a, era a sinfonia favorita dele, do Swarowsky. E ele já estava bem fraco, caminhava na rua comigo agarrado no meu braço. E nós estamos de repente nas proximidades do famoso Musikverein, em Viena, essa sala em ouro e vermelho, e uma orquestra toca (e canta o trecho). 1a sinfonia de Brahms, e chega o momento da chamada apoteose (e canta de novo com um ralentando) que não é escrito, nada é escrito. Não tem apoteose! Se o Brahms tivesse desejado um grande ritardando ele teria escrito ritardando. Não tem, não tem! Swarowsky me pegou assim um pouco mais forte e me contou:
- Olha, 30 anos atrás eu estava com meu amigo Anton Webern... 
O compositor Anton Webern. Webern e Swarowsky em 1945 nessa mesma situação: algum regia a 1a de Brahms (e canta com o ritardando de novo) com a apoteose; e Swarowsky me contou que Webern ficou furioso e gritou:
- O imbecil, o que ele está fazendo?! Quem é esse imbecil???
O imbecil era um homem muito famoso, famosíssimo, um grande nome da regência de orquestra. Webern detestava aquele que se permitia uma liberdade desse tipo com Brahms: A música do Brahms é perfeita, perfeita! Mas eu não vou te dizer quem é! Grande nome, já morto há muito tempo. Tem pessoas que gostam dele, por que não? Eu prefiro o outro, o Klemperer. Pra mim Klemperer, ah... Mas não é Klemperer! Quando este aparelho (o gravador) estiver desligado, aí eu conto! 

THOMAS BEECHAM, SÁBADO DE MANHÃ

Thomas Beecham. Foto
extraída daqui
JD - Thomas Beecham também detestava os ensaios sábado de manhã, detestava. Então um dia ele ensaiou, para começar, uma coisa de Edward Elgar. Mas depois normalmente ele teria de ensaiar a 4a sinfonia de Brahms. Terminado o Elgar, ele falou:
- Bom, senhoras e senhores, todo mundo conhece bem, eu acho, a 4a de Brahms. Eu também! Então, vamos parar?
Um jovem clarinetista muito tímido, se levantou cheio de medo, e falou:
- Maestro, com licença, eu nunca toquei a 4a de Brahms, eu não conheço! Vergonha minha, mas eu não conheço a 4a de Brahms. Tô com medo. 
Thomas Beecham:
- Não se preocupe, eu posso garantir, é uma obra muito linda, e você vai gostar!

ENTRE SOLISTAS E MAESTROS

JD - Um dia em Viena, quando eu estudava ainda, David Oistrakh - maravilha! -, Rostropovitch - não era mau, hein? - e Sviatoslav Richter gravaram o concerto tríplice de Beethoven. Regente: Karajan. Tava problemático. Tem um documentário sobre Richter onde ele fala sobre essa gravação. Mas quando a gravação terminou, o Richter falou o seguinte:
- Eu? Eu tentei tocar Beethoven, eu tentei! Rostropovitch estava convencido de tocar Beethoven. Oistrakh se deu toda a pena do mundo para tocar Beethoven, e Karajan era Beethoven em pessoa!
Essa é a foto que aparece em todas as edições desta
gravação. No documentário, mais precisamente aos
36' 53" do video, Richter conta a história da gravação
e da foto. Reparem nas expressões deles.
Não teve nem um pouco de entrosamento, Karajan nunca se..., digamos, tava preocupado com ele mesmo. Uma outra situação desagradável aconteceu entre meu amigo Carlos (Kleiber) e o pianista (Arturo) Benedetti Michelangeli. Benedetti tava lá no ensaio e falava com músicos da orquestra ignorando totalmente a presença de Carlos. Ah, isso não é correto, não pode fazer isso, eh... Até que chegou ao ponto no qual Carlos deixou cair a batuta e falou:
- Eu não aguento mais a visão desse idiota!
Se mandou e nunca voltou. Parou por aí! Ele explicou muitos anos depois que chegou ao ponto de não aceitar mais essa conversa do pianista sem passar por ele. É feio, muito feio.

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