04/04/2018

COMO EU AQUEÇO - JON THORNE

Foto de Ollie Ford

Em outubro de 2017 tive o privilégio de acompanhar o violista Jon Thorne como tradutora. Foi uma semana de atividades em São Paulo, onde ele deu masterclasses de viola e música de câmara, além de fazer um ensaio com a Orquestra Sinfônica Infanto-Juvenil do GURI.

Jon Thorne é inglês e estudou viola na London College of Music e depois na Royal College of Music. Hoje em dia é parte do corpo docente da Royal Academy of Music, onde dá aula de viola e música de câmara. Também trabalha com as principais orquestras inglesas - sempre como chefe de naipe - e já se apresentou nos principais palcos da Europa com seus quartetos e grupos de câmara, além de ser banca de concursos internacionais de música de câmara. Vamos falar bem mais sobre a carreira dele em uma outra entrevista (aliás, também ótima), que será publicada aqui em breve.

O fato é que a oportunidade de ver Jon Thorne dando aula, transformando pessoas e sua relação com a música em minutos foi fascinante. Em música de câmara então! Foram poucas as vezes em que presenciei a "arte de dar aula de arte" em cores tão vivas! Ver tanta paixão e eficácia ao ensinar a fazer música me levou a fazer a entrevista, e a conversa com este ser humano generoso foi bem humorada e rica. Espero que gostem!


Helena Piccazio - Então você toca viola.

Jon Thorne - O que é divertido, sim.

Helena - Como você aquece? Qual a primeira coisa que você faz quando tira a viola do estojo?

Jon - Além de afinar? (risos)

Helena - Sim.

Jon - Eu sempre começo com notas ridiculamente longas.

Helena - Quão ridiculamente?

Jon - Eu começo contando até 4 ou 6, mezzo-forte, no cavalete. Sem tentar fazer o som mais bonito do mundo, apenas tentando sentir meus braços, buscando que eles fiquem aquecidos e vendo como eles estão de manhã, porque nunca se sabe! Eles podem ter desaparecido durante a noite! E aí eu tenho um grupo de músicas que está na minha cabeça, que é uma ligeira bastardização de músicas que aprendi quando era criança, sabe um método da escola, tipo livro 3 de quando você é pequenininho. Mas eu voltei a esse livro quando eu tinha 21 anos. Eu realmente voltei aos básicos, então eu lembro dessa música.

Helena - Que livro é esse?

Jon - ETA Cohen, é realmente para crianças. É apenas uma coisa que eu lembro, mas cobre todas as 4 cordas, o que é bom para acordar os braços. E começo com 4 ou 6 segundos por arco. Geralmente tem algum relógio por perto, então eu só sigo os segundos. E estou sempre em um espelho, sempre observando meu arco. Não com um super vibrato, mas…

Helena - Ah, então você faz as notas longas com notas presas, e não em cordas soltas?

Jon - Sim, tem uma música. E então eu vou para 8 tempos, aí 10 e geralmente termino em 22, 24 segundos por arco. E começo mezzo-forte e vou ficando cada vez mais piano. Então começo a me afastar do cavalete. E aí eu começo a fazer uns vibratos meio loucos, e isso é apenas para aquecer a primeira articulação dos dedos.

Helena - Só a primeira articulação?

Jon - Sim, porque é onde está todo o vibrato. O vibrato é o movimento da primeira articulação do dedo. Eu faço vibrato de pulso, mas é só para fazer rolar a carne do dedo pra cima e pra baixo na corda. Não sei se dá pra ver (ele mostra), eu estou me movendo dali de trás do dedo até a ponta do dedo, é um rolamento, e é na linha da corda, e não para cima e para baixo. Estou indo na direção do meu nariz, entende o que eu quero dizer? Cada dedo, é só para aquecer a primeira articulação, me certificando de que a articulação da base do dedão também está livre, sabe essa parte gordinha da palma da mão? A mesma coisa na mão do arco! Essa parte da mão é tão negligenciada, a gente estava falando sobre isso na masterclass essa semana, essa parte da mão é tão importante na produção de som. E aí eu faço vibrato de braço, observando exatamente as mesmas coisas. A parte do aquecimento para o arco demora uns 5 minutos e essa do vibrato 1 minuto. E tudo isso soa horrível, nada disso é programado para ser bonito, essa parte é toda sobre meu corpo. Em nenhum momento eu estou tentando soar bem. Nesse ponto da vida talvez eu soe ok, mas eu não estou usando meus ouvidos, apenas a sensação do meu corpo. O resto do meu estudo são meus ouvidos, se isso faz sentido.

Helena - Sim!

Jon - Então isso é apenas para o meu físico, para começar.

Helena - Mas boa música sai de corpo bom.

Jon - Eu penso que sim. Veja, nós todos temos problemas porque temos que segurar esse pedaço de madeira todo cheio de ângulos esquisitos, então todos temos nossas dores, e temos que nos virar. Se bem que eu sou muito sortudo, não tenho muitas dores. Mas sim, sou bem cuidadoso. E claro que às vezes você não tem como aquecer, nada.

Helena - Mas quando você tem o tempo…

Jon - Sim, é isso que eu faço.

Helena - Então esses 2 exercícios seriam o seu aquecimento? E pronto?

Jon - Sim, é isso. Talvez, se eu não tiver tocado por um tempo, umas férias de uma semana ou algo assim, aí eu faço umas escalas em uma corda só do Flesch, para me lembrar de como mudar de posição, a leveza dos dedos pra cima e pra baixo na corda.

Helena - Algumas pessoas separam aquecimento de trabalho técnico. Para algumas pessoas é a mesma coisa, para outras são coisas diferentes. Como é para você? Você faz trabalho técnico nesse ponto da sua vida ou…?

Jon - Mas claro! Claro! Porque seu corpo está constantemente se desenvolvendo, e isso significa que você tem que estar constantemente polindo coisas que estão piorando. E esse estar alerta para o seu próprio corpo, o que está funcionando bem, tipo você sai do palco e talvez pense “Sabe de uma coisa? Minhas tercinas de semicolcheia em pianíssimo fora da corda, hum… preciso dar uma estudada nisso.” Sabe o que quero dizer? Elas estavam ok no concerto, mas eu poderia estar mais confortável.

Helena - Você se sente mal.

Jon - Sim, eu noto isso, eu faço um registro em algum lugar da minha mente. E nesse ponto eu abro um Sevcik, abro um Kreutzer, o que for, só para consertar aquela uma coisa.

Helena - Então você separa sim o trabalho técnico do aquecimento. 

Jon - Definitivamente sim.

Helena - Seu aquecimento é sobre o seu corpo, seu trabalho técnico é a sua consciência de como você se sente em cada aspecto técnico, e aí você vai para onde você acha que precisa de mais trabalho.

Jon - Sim. E veja, às vezes você se sente confortável, então não faz nenhum trabalho técnico. Talvez o concerto do dia anterior tenha sido bom, então tudo bem, porque também tem um monte de outras coisas para estudar! (risos) Tenho um monte de música para aprender e claro, você estuda técnica nessas músicas também de qualquer jeito.

Helena - Mas é legal essa noção de que, depois de atingir um certo estágio, não é que você tenha que estudar as mesmas coisas técnicas todo santo dia. Sabe quando você está equilibrando muitos pratos e você vai só atrás daqueles que precisam de atenção? E às vezes nenhum precisa de atenção. Bom saber disso, porque às vezes a gente acha que ao se tornar profissional, não precisamos estudar tanto assim.

Jon - Não, a gente precisa estudar muito. Nós precisamos estar muito alertas, e o truque é estar alerta o suficiente para que, num concerto, ninguém na plateia note, mas você saiba. Se alguém te prendesse na sala de interrogatório da Baía de Guantanamo, com uma luz ofuscante na sua cara e perguntasse bravo: “Como foi o seu spiccatto?”, sabe? “Ok, ok… vou estudar…”. Em geral, ter essa honestidade consigo mesmo, é realmente muito importante.

Helena - Para você, existe diferença entre aquecer para estudar e para se apresentar?

Jon - Bom, para performances eu tenho uma rotina de verdade. E a uso tanto para uma apresentação no meio do nada para um único senhor com seu cachorro, quanto para um concerto ao vivo para a rádio na mais prestigiosa sala de concerto, tipo no Wigmore Hall ao vivo com meu quarteto na Radio 3 - o que foi uma grande honra -, ou Concertgebouw, ou algum outro. E eu uso de propósito em todos os lugares, toda vez, para orquestra, solo, quarteto, essa mesma rotina está ali. Eu não toco nada da música do concerto na coxia, nunca. Já é tarde demais, me deixa estressado! Se eu não consigo tocar no ensaio ou na coxia, eu nunca vou conseguir tocar no concerto. Então por que me deixar preocupado? Tarde demais. Se você não estudou direito antes, então a culpa é toda sua! (risos)


Helena - Qual é a sua rotina?

Jon - Vamos imaginar um concerto que começa às 7h30 da noite. Depende um pouco de como me sinto, mas tipo 10 para as 7, eu às vezes saio para dar uma volta, o que é legal. Eu roubei essa ideia do pianista John Lill - um pianista inglês muito famoso que ganhou o Concurso Tchaikovsky, fantástico, realmente bom! -, ele sempre saía para dar uma caminhada antes de um concerto. Não faço isso sempre, mas é bom para trazer a mente para o presente. Você sai dos estresses da viagem até o local, o ensaio, tudo o mais, você apenas… você sai fora. Você limpa o dia um pouquinho. Às 7 horas eu muito frequentemente durmo um pouco, 10 minutos. Eu ponho o despertador e deito às vezes no chão do camarim mesmo, com o caos acontecendo à minha volta. 8 a 12 minutos de sono é maravilhoso. Você está meio que consciente do que está acontecendo, então você não está verdadeiramente dormindo, mas você está, porque o tempo passa rapidinho, é muito interessante. Mas eu sinto que alguém me deu uma bombeada massiva de café. Isso eu aprendi a fazer com o quarteto, porque eu costumava ser o motorista do carro da viagem, e ficava podre de cansaço. E depois do concerto precisava levar todo mundo de volta para casa também. E ter esse momento onde você não está fazendo nada, te recarrega. E foi aí que eu aprendi a fazer isso. Mas o truque é deitar no chão, fechar os olhos e se dizer: “Olha, mesmo que eu não durma, na verdade 10 minutos sem fazer nada é maravilhoso.” 

Helena - E é.

Jon - Especialmente nesse momento. E aí você vê que o despertador tocou e… poxa. Às vezes eu acordo antes do despertador, é interessante isso, dá pra ver o corpo dizendo “Ei, não preciso mais disso.” Às vezes você ajusta o despertador para dali a 13 minutos, mas seu corpo só precisa de 11, e você acorda, “Tô pronto. Bora.” Para mim, o uso do despertador é para me deixar mais relaxado, sem medo de perder a hora. Aí eu me visto, o que demora uns 30 segundos. Nesse ponto eu tiro o instrumento do estojo, toco umas cordas soltas e devolvo a viola ao estojo.

Helena - Nada de mão esquerda?

Jon - Não, quer dizer, toco umas 10 notas. Afina, afina, afina. Ok, as coisas ainda estão aí onde deixei uma hora atrás, de volta pra caixa. Depois disso eu acho um canto tranquilo em algum lugar, e medito por mais um menos 1 minuto, o que consigo fazer super fácil. Muito frequentemente esse lugar tranquilo é o banheiro, porque tem o caos acontecendo em volta, com gente correndo de um lado para o outro, produtores querendo falar com você na hora que você não quer, como sempre, ou alguém do teatro querendo saber sobre cadeiras, horário das portas, e eu só quero ficar sozinho. Aí o quarteto afina, ou eu afino antes de entrar e só nesse ponto eu começo a pensar no que vou tocar, e aí faltam 5 minutos para começar o concerto. Não estou realmente tocando, mas apenas pensando.

Helena - Colocando sua mente na música.

Jon - Na hora que eu entro no palco eu já estou no caráter da primera peça.

Helena - Você falou sobre isso nas masterclasses.

Jon - Para mim isso ajuda muito! Porque isso significa que você pode começar o concerto bem, ao invés de esperar a primeira repetição para estar dentro do concerto. Significa que você está focado, está dentro, no caráter certo, sim… é algo que realmente funciona para mim.

Helena - E a música sai mais honesta.

Jon - E já de cara também. Você não está tentando se achar, mas está imediatamente lá. Mas é o que a gente estava falando essa semana, a diferença entre estudantes e profissionais é que um profissional aprendeu a ligar o botão da performance. Que você tem o seu eu normal, e o eu da performance.

Helena - Sim, essa é uma boa diferença.

Jon - Você ainda é a mesma pessoa, sem mentiras ou faz-de-conta, é só que você está um pouco mais… bem, em performance!

Helena - É um estado mental diferente, não uma pessoa diferente.

Jon - Sim, sim. Eu diria que é um enorme aumento de intensidade. Olha pra gente, nós dois estamos aqui sentados, com os braços relaxados, tendo uma conversa, mas tenho certeza que se eu de repente dissesse "Você tem que tocar violino agora.”, você acenderia.

Helena - Sim, eu mudaria na hora.

Jon - Sim, claro que muda. É o mesmo, e a gente se acostuma com isso. E eu ligo esse botão no máximo que posso e com tudo que tenho nesses últimos 3 minutos antes de entrar no palco.

Helena - Basicamente essa rotina que você tem é para o seu ser, e não para o seu tocar.

Jon - Sim. Porque eu já ensaiei por 3 horas, já estudei toda a semana.

Helena - O trabalho já está feito.

Jon - Deveria! (risos) 

Helena - Mas mesmo que o trabalho não tenha sido feito antes, estressar 5 minutos antes de tocar não ajuda.

Jon - Não. Não vai mudar nada, tarde demais.

Helena - A outra coisa sobre aquecimento é: você aquece seu corpo? Faz alongamento? Algumas pessoas fazem ioga. Você faz algo para o seu corpo?

Jon - Não. Eu corro um pouco, não muito rápido e não muito longe (risos), quando tenho tempo. Tenho uma família jovem, e às vezes simplesmente não há tempo. À vezes passa um mês e não fiz nada, então sinto falta. Mas sou bem atento fisicamente. Tive um professor que fazia tai chi chuan, e ele abriu minha mente para isso, porque minha família não era muito dessas coisas, eles chamavam de coisas “lentilhas e grãos-de-bico” (expressão inglesa para bicho-grilo, hippie), coisas tipo vegetarianos, exercícios de consciência corporal. Venho de uma família do norte, sabe, e as famílias do norte são de gente mais dura, que trabalha muito, esse tipo de pessoa. Mas esse professor estava muito na onda do tai chi, muito útil! E ao longo dos anos, eu pensei muito sobre isso, mas também fiz um curso de filosofia depois de me formar em música, quando eu tinha uns 27, 28 anos. Eles costumavam chamar de Filosofia para Leigos (Philosophy for Dummies). E isso foi demais! Isso abriu a consciência de outras coisas também, o que foi realmente bom.

Jon ensaiando as cordas da Orquestra
Sinfônica Infanto-Juvenil do GURI
Helena - Quando você estava estudando música nas instituições, você teve aula de Técnica de Alexander ou alguma coisa do gênero?

Jon - Não estava disponível na época. Ou talvez estivesse e eu não sabia. Mas acho que não mesmo. Meus alunos fazem isso muito agora e estou constantemente falando com eles sobre isso. É demais! E nos meus alunos é fantástico, está fazendo coisas maravilhosas para um dos meu alunos. É brilhante, totalmente! Sim, essa consciência de como o corpo é conectado, e como você ensina ao cérebro novas memórias, por exemplo os alunos acham muito difícil abaixar o segundo dedo sem mexer o terceiro. É uma trava real para eles, frequentemente. Profissionais fazem isso sem problema, mas se você diz a um estudante “não mexa o terceiro dedo”, eles ficam travados e o terceiro dedo desce junto. Mas você pode reprogramar isso em segundos se você entende como explicar para eles como o corpo funciona. Você está explicando o caminho dos neurônios através do cérebro, e os neurônios vão pela rota mais usada. Tem milhões de opções de caminhos para a eletricidade para chegar no mesmo resultado, e você só tem que explicar isso a eles, e falar sobre os músculos que eles não usam tanto quanto sobre os que eles deveriam usar. Se você faz isso por aquele estudante, segura aquele terceiro dedo, e pergunta: “Bom, o que você não está movendo? Apenas imagine na sua mão e no seu braço o que você não está mexendo.” Aí ele abre o bíceps, o ombro, e então você pode dizer “Você gradualmente pode tomar meu lugar aqui segurando esse dedo”. 

Helena - É estranho que pouca gente nos lembre, enquanto estudantes, que o novo traz uma sensação nova.

Jon - E estudantes morrem de medo do novo! Porque eles pensam que o novo deveria ser perfeito imediatamente! E fico dizendo para eles “Olha, se você conseguisse tocar isso nessa velocidade, era você que estava nessa cadeira dando aula para mim! (risos) Porque eu demorei anos! Se você consegue tão rápido, eu quero saber como!” 

Helena - Então você não faz esportes ou algo do gênero, mas você tem um consciência profunda do que acontece no seu corpo quando você toca.

Jon - Não tenho tempo para esportes.

Helena - Mas você cuida do seu corpo quando toca, então esse cuidado não está aonde nós pensaríamos, mas está lá.

Jon - Por exemplo, na minha sala de estudo tem um espelhão grande obviamente, porque você precisa poder ver tudo, e isso ajuda a aprender mais rápido, pois sempre tem uma razão para algo não estar funcionando. Então você olha no espelho e se dá conta: “Ah, seu braço não está se mexendo, seu besta!”, ou o que for. Mas geralmente tenho minha estante loucamente alta! Para ter certeza que estou com uma postura realmente boa. Isso é só uma pequena coisa que desenvolvi para mim, para me ajudar, e eu adoro isso.

Helena - Eu fazia a mesma coisa… eu fiz um ponto vermelho no alto da parede para onde olhar quando tocava coisas de cor!

Jon - É apenas essa ideia de que você deveria voltar à sua espinha quando você toca, você deveria estar… pesado, se você preferir. É tão difícil, né? Porque você está empurrando contra você mesmo. Para explicar, se você empurra você mesmo forte o suficiente, e depois puxa pra baixo, isso puxa o seu corpo todo para o chão. Mas pera, você está fazendo isso em você mesmo, como assim? Então o conceito é bem difícil de ensinar, e bem difícil de estudar.

Helena - É, eu costumo dizer aos meus alunos que o difícil de tocar violino não é tocar violino, mas o fato de que tudo que você quer fazer, tem que fazer ao contrário. Por exemplo, você quer forçar o som quando na verdade você tem que apenas largar seu corpo.

Jon - Verdade, realmente verdade. Você quer se mover rápido na corda, você tem que se mover muito devagar. Lembra do Stamitz que estávamos ensinando na masterclass essa semana, e o aluno estava apenas indo rápido, rápido, rápido? Uma bagunça total. Tudo desafinado. Apenas desacelere um pouco e fica lindo, ele tocou fantasticamente. Apenas dê a ele esse espaço. Aprender que você pode sentir lento, mesmo soando rápido. E essa desconexão é muito amedrontadora para estudantes, porque trabalhamos tanto em instintos e emoções, em como se deveria sentir quando estamos fazendo certo. Como você sabe que está fazendo um som bom?

Helena - Você tem uma sensação boa no corpo.

Jon - É! E você pode sentir o arco vibrando, você sente a madeira vibrando, você sente seu queixo vibrando!

Helena - E a corda! E é muito louco porque seu corpo está aqui, mas a sensação está aqui (no local de contato do arco na corda), você sente nesse lugar fora do corpo. É tão louco!

Jon - Exatamente. E aí você tem seus ouvidos e o seu gosto que dizem: “Ok, isso está bonito e eu quero isso também.” E aí você muda, e é essa coisa que é um processo de evolução constante.

Helena - Então a sua rotina de aquecimento não é diferente para orquestra, música de câmera, solo.

Jon - Não, eu vou tocar o mesmo instrumento, a viola. Então não.

Helena - E quando você não tem tempo?

Jon - Aí não aqueço.

Helena - Se você tem tipo 5 minutos antes do concerto começar, o que você faz?

Jon - Isso é uma coisa que acontece sim. Recentemente tivemos um concerto com nosso quarteto em que a viagem deveria durar 3 horas, então saímos às 11 da manhã de Londres e pensamos: a gente chega lá umas 14, ensaia das 15 às 18, come algo de jantar, e o concerto é às 19h30. Ótimo, nada mal. Um dia não muito estressante. E aí entramos na rodovia e estava um estacionamento, basicamente, um mundo de carros que não se movia. Tinha um engarrafamento, não tinha para onde fugir, apenas um caminho por onde ir. Então telefonamos ao produtor “São 11h30 da manhã ainda, mas só para avisar, isso não parece bom.” Estávamos todos no telefone, tentando algo. E descobrimos que o produtor estava no mesmo engarrafamento, na altura da saída seguinte, também indo para o mesmo lugar. Chegamos no local do concerto às 19h25. Depois de estar sentados no carro durante todo o dia, você pode imaginar…Tinha problema atrás de problema atrás de problema. E tínhamos que tocar Haydn, Bartok, a Morte e a Donzela, algo assim. Então não era fichinha. Chegamos às 19h25, sem comer. O produtor disse: “Nós mudamos o concerto para às 19h45. Aqui tem sopa, pão, comam isso. Vocês tem 10 minutos para comer, 5 para se trocar, 5 minutos para aquecer.” Então isso acontece sim, na vida real. Não foi o melhor dos dias. Mas eu acho que a gente sobrecompensa. Olha, estávamos todos nos sentindo um pano de chão, meio ásperos. E depois as pessoas vieram até nós e “Meu Deus! O quarteto tem tanta energia! E tenho certeza que foi porque vocês tiveram um dia tão ruim e estavam tão preocupados em não ter o comprometimento certo, porque se sentiam tão mal.” Como humano, você sobrecompensa. Mas em termos de aquecimento, eu faço uma versão curta da rotina longa, aquela que falamos no começo. Um aquecimento com um pouco de vibrato. Se não toquei a música do concerto naquele dia, talvez eu abra a partitura só para olhar, para me lembrar “Ok, página 3, segundo violino quer mais tempo aqui, tenho que lembrar disso.” Esse tipo de coisa.

Helena - Não com a viola, mas sim com seus olhos.

Jon - Sim, com meu olhos. A coisa é que não tenho uma memória muito boa. Fiquei muito doente quando tinha 18 anos. Tive meningite, durante 2 horas eu não estava mais aqui, mesmo. Eles não sabiam se eu seria capaz de andar, ou sobreviver, ou qualquer outra coisa. Então sou muito sortudo de estar vivo, e é por isso que tenho esse desejo pela vida. Por isso minha memória é horrível, então se você me pede para cantar o que estou prestes a tocar no concerto, muitas vezes não consigo fazer isso. Posso te dar a sensação da música. O quarteto ri de mim, porque a partitura está no palco e eles gostam de tocar os 5 primeiros compassos antes de entrar para tocar. E eu não consigo tocar! Não consigo tocar os 5 primeiros compassos de cor. E eles acham hilário. Na hora que eu dou uma olhada na música, eu fico bem. Terrível… Então ocasionalmente eu relembro de algumas coisas com a partitura, e não vou tocar de verdade, mas mexo um pouco a mão esquerda imitando o gesto de tocar. De vez em quando só com um pouquinho de som, arco na ponta, lentamente. É uma ajuda para a memória, não uma ajuda para tocar. Mas só em circunstâncias extremas, porque normalmente a gente tem ensaio antes, então não tem problema. Mas isso acontece! E depois desse concerto a gente voltou imediatamente para o carro para fazer a viagem de volta, então passamos o dia inteiro dentro do carro, com um pouquinho de música aí no meio. Isso é vida de músico, você deve viver a mesma coisa.

Helena - Aqui em São Paulo não sei se a gente viaja tanto, e não temos tanta música de câmera, infelizmente. Está ficando melhor. Ao ver a masterclass do outro dia, deu para ver o quão melhor. Temos bons professores, muita gente foi embora estudar e voltou, e voltaram querendo compartilhar coisas. E talvez isso seja o assunto do meu blog, se chama Papo de Violinista, tipo “Gente, conversem!”. É uma questão minha, talvez. “Falemos sobre as coisas que temos medo de falar.” Porque é aí que nos enriquecemos. Para mim, fazer música não significa ser melhor do que ninguém, é sobre fazer coisas com as outras pessoas, e para mim é melhor tocar com pessoas que tocam bem, é mais fácil, mais legal, enfim, melhor para tudo. Então eu quero que todo mundo seja melhor que eu, e quero tocar com todo mundo!

Jon - E claro, como professor, o seu objetivo tem que ser fazer os seus alunos melhores do que você. Mal posso esperar pelo dia em que vou ser o viola 2 do meu aluno que está de viola 1. Vai ser um momento grandioso na minha vida. Maravilhoso.

no ensaio com as cordas da Orquestra
Helena - Sobre o blog, a postagem de maior sucesso é sobre nervoso.

Jon - Mas claro. Os alunos estão fascinados, preocupados, terrificados.

Helena - Eu também tive, tenho, muitos problemas, muitos medos. Você já teve esse problema?

Jon - Claro! Todo mundo tem.

Helena - Você ainda tem ou…?

Jon - Eu fico nervoso para tudo que eu faço.

Helena - Uau! Não parece.

Jon - Claro, porque você se importa. Se você se importa com o que você faz, se você se importa com o resultado, você fica nervoso.

Helena - E o que você faz a respeito? Isso te atrapalha?

Jon - Não mais. Eu aprendi que preciso disso. Na verdade, eu sou menos se eu não tiver isso. Sou menos pessoa, menos instrumentista. É muito interessante. Nos concertos onde o nervoso não está lá, não consigo ver a Matrix tão bem. (risos) Você entende o que estou dizendo?

Helena - O que mudou?

Jon - Muita coisa. Idade, experiência, a compreensão de que não posso ser mais do que sou. Sabe, não tenho nada além disso, bom ou mau. E as pessoas podem decidir isso por elas mesmas, tudo que posso fazer é ser verdadeiramente honesto sobre o que faço. Sabe, você me ouviu sempre falando sobre a linguagem dos compositores, se eu estiver o mais próximo possível, com o máximo de entendimento que eu puder, com o máximo de habilidades que tenho, ou nem tenho, eu não posso dar mais do que isso. Julgue-me, ok, posso te mostrar críticas onde você sente pena do crítico, porque ele teve uma noite horrível (risos), sobre de concertos que eu achei ok. E concertos que achamos terríveis, que tivemos 5 estrelas. Sabe, é besteira. Besteira total. Tem que parar de pensar nisso. E enquanto você, e digo de verdade mesmo, e honestamente e abertamente - de novo, voltando à Baía de Guantanamo, se alguém pudesse botar você numa cadeira e perguntar: “Você realmente fez o que podia?” - se você responder “Sim”. Aí você não tem nada a temer.

Helena - Então é sobre focar no que você tem a oferecer, e não no que as pessoas querem ouvir.

Jon - Sim! As pessoas vêm querendo ouvir Haydn, eles decididamente não vêm ouvir Jon. De verdade. Se você olhar o poster, onde diz “Venha ver o Jon”? Não diz em lugar nenhum. Está escrito “Venha ouvir Mozart, Haydn, Schubert.” Então esse é o seu trabalho enquanto performer, representar os compositores o máximo que puder, não importa quem seja, ou quão boa a música é. A gente sabe que às vezes a gente tem que tocar música ruim, mas a gente tem que polir para fazer ela parecer melhor! (risos) Mas para mim, esse é o momento mais relaxante, porque você está realmente livre, você está fazendo um favor a eles, mesmo. Tem isso. Aquele curso de Filosofia que fiz foi bem interessante porque foi com uma mistura real de pessoas. Não eram músicos, eu era o único. Tínhamos um gerente de Fundo de Investimento Livre; um asset-stripper, que é quando se compra empresas e as vende em pedaços, o que pode ser bem brutal…; tínhamos uma pessoa que trabalhava na prisão; tinha essa dona de casa de meia idade que fazia basicamente jardinagem, mas também escrevia livros; tinha uma estudante canadense num ano entre a escola e a faculdade, que estava ali por diversão; e tinha um modelo gay da Arábia Saudita que também era soropositivo, então dava para imaginar a confusão que estava rolando na vida dele! Inacreditável. E também uma garota ultra judia, que agora está voltando para Israel, que trabalhava para uma empresa de bebidas em Londres. Então era um grande cruzamento de vidas.

Helena - Era um curso?

Jon - Sim, e a gente caiu nessa classe juntos. E estávamos todos ali estudando diferentes filósofos e tudo. Muitas conversas, conhecendo uns aos outros. Mas realmente discutindo os conceitos. E uma das coisas que me dei conta é que nós músicos - e eu digo isso do melhor jeito - gostamos de pensar que somos um pouco diferentes, talvez até mesmo especiais. E na verdade a gente não é diferente de ninguém. Nossos sentimentos quando vamos para o palco, e eles são exatamente os mesmos de uma pessoa de pé ali na frente fazendo uma apresentação na sala de reuniões, para uma pessoa que quer fechar um acordo, ou lidando com uma briga na prisão. Esses sentimentos são humanos, não de músicos. Mas a gente está nessa nossa pequena bolha, como músicos, a gente acha que vive nesse mundo que ninguém consegue entrar, mas é só normal. A gente só está sendo, no fim, completamente, tediosamente, normal. (risos) Como eu digo, se você se importa com os resultados, você não quer apanhar, o que quer que seja, você fica nervoso, e você precisa disso, seu corpo precisa disso para se focar ainda mais intensamente. E, de verdade, se você quer pegar as menores nuances do seu colega sentado em qualquer cadeira, você precisa desse estado de alerta.

Helena -  E isso vem do que a gente chama de nervoso, ansiedade? Então não é necessariamente ruim.

Jon - Ah! Eu separaria 2 coisas, eu acho que nervoso e ansiedade são 2 coisas diferentes. Nervoso é quando você se importa com o resultado. Ansiedade é quando você está preocupado com o passado ou futuro. Acho que essa é uma grande separação. Ansiedade é causada por “Ah, droga, eu acabei de tocar aquela mudança de posição horrível na página 2, não acredito! Eu sou um violista inútil! E ainda tem o concerto inteiro pela frente. Ah, meu Deus, isso é terrível!”, ou “Ai, aquela passagem está chegando, está chegando!”, ou “Da última vez que toquei isso estava tão ruim, talvez isso aconteça de novo.” Com as milhões de variações de coisas assim. Aquela uma lição que aprendi em todas as coisas é que para fazer música, você tem que estar no presente. Se você estiver pensando sobre o passado ou futuro, você não está ouvindo, e não está se concentrando, você está subtraindo do agora, dessa incrível atenção do nervoso. E se alguma parte da sua mente acaba como - em Filosofia isso é chamado de “o observador” - se alguma parte do observador está fazendo comentários enquanto você toca, você não está focado no que você está fazendo. Você não está no momento. E isso é muito perigoso para fazer música.

Helena - Sim… você leu “O Jogo Interior do Tênis”?

Jon - E ouvi falar, eu tentei as 5 primeiras páginas e não consegui continuar…

Helena - Mudou minha vida… Bom, eu comecei a ler esse livro algumas vezes, até que finalmente decidi a ir em frente. Ele fala desse observador, ele fala disso e então tem você e o observador, com outros nomes, e ele contou a sua própria história e de como ele lidou com isso. E aí comecei a adaptar isso à minha história, no caso, o violino, e mudou minha relação com meu estudo, com violino e com me apresentar. Você começa a se fazer perguntas e aí, estudar é sobre fazer perguntas, e não sobre achar respostas.

Jon - O que eu vim dizendo durante toda a semana.

Helena - Sim! Para mim esse livro foi o mais claro e efetivo, foi um choque na minha existência toda, em relação à isso.

Jon - Uma coisa que eu adicionaria, não lembro de qual filósofo era, é: “Eu não sou a minha viola, ela é um instrumento para o meu uso.” Pense sobre isso, isso é maravilhoso, porque frequentemente nos definimos taaanto pelo que tocamos. Mas não somos o instrumento. Eu não sou mais a minha viola do que eu sou um jogador de tênis, ou qualquer coisa. Eu sou o Jon, para todas as coisas boas e más. E tem muito dos dois lados! (risos) Tento tanto fazer o máximo possível com o que tenho, mas eu ainda sou eu, e não posso melhorar nisso. Mas essa coisa “Eu não sou minha viola, é um instrumento para o meu uso.” E mais uma coisa que eu somaria a isso, que meus alunos acham incrivelmente útil - e eu queria ter tido o poder cerebral de ter pensado nisso, mas não é meu. Tem um corredor chamado Michael Jonhson, do fim dos anos 90, com recorde nos 200m, e ele tem uma academia de esportes que é patrocinada pela Nike, é a liderança em tecnologia dos esportes e tudo o mais. Ele é um cara realmente iluminado, e a preparação para os esportes é muito aplicável ao que a gente faz. Ele tem uma frase que, quanto mais eu penso nisso… ele diz “Pressão é um privilégio.” Brilhante. É absolutamente maravilhoso. Quanto mais você se aprofunda nesse caminho, mais você sente o direito de ficar nervoso, mais te dá o direito de melhorar, de se empurrar pra frente… Você conquistou o direito de sentir aquela pressão. Você, com as qualidades que você tem, com o talento que você tem, com seu som. Quanto mais você pensa nisso, mais é totalmente brilhante.

Helena - Tem muitas camadas. Vou ficar uns anos pensando nisso…

Jon - Mas acontece isso, fica dando voltas na minha cabeça sem fim. É brilhante!

Helena - Obrigada por compartilhar essa frase com a gente!

Jon - É como eu disse, eu queria ter tido o cérebro de ter pensado nisso, mas foi o Michael Johnson que disse!

Jon Thorne e eu



SalvarSalvar

2 comentários:

  1. Reli essa aula três vezes de ontem para hoje, e fiquei pensando... nossa como nunca pensei nisso rsrs... (falta de experiência rsrss)

    ResponderEliminar